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encontrando woody allen

Caio Guerra

ensaio, out 2012

“I`ve known you since I was born; it`s about time you meet me!”. Era isso o que minha irmã planejava dizer a Woody Alen ao final do show. Ela ensaiou a frase por semanas, desde que descobrimos que ganharíamos uma viagem a Nova York. Não conseguimos reservar uma mesa (tentamos com um mês de antecedência, mas os lugares haviam acabado ainda um mês antes), mas ainda existia a esperança de sentar no bar, ao fundo da sala.

Pra quem não sabe, Woody Alen (em grande parte graças à influência de nossos pais) é um dos nossos cineastas favoritos. Assistimos aos seus filmes desde crianças, desde a sua época pastelão até os mais modernos filmes introspectivos. E esse diretor, tão nostálgico para nós, é também um ótimo músico de jazz; clarinetista em uma simpática banda que se apresenta oito segundas feiras por ano em uma salinha reservada, num cantinho de um hotel chique.

O show começa religiosamente às 20:45. Às 17:45, esperávamos à frente da porta de vidro para ver se teríamos a oportunidade de entrar. E nós não éramos os primeiros da fila. Ainda assim, como não havia mais do que uma dúzia de pessoas à nossa frente, existia esperança.

Eram quase seis e meia quando o primeiro evento mais interessante se deu: três brasileiras entraram pela porta giratória do hotel, conversando alegremente sobre nada. Uma delas falava por celular com sua amiga que ficara no Brasil, projetando sua voz sobre o aparelho como se precisasse percorrer toda a distância até nosso país. Ao ver que elas pareciam indecisas diante da fila (que aumentara consideravelmente nos últimos quarenta minutos), minha avó resolveu puxar assunto, falando que a fila era de fato essa, o que elas interpretaram como um convite para entrar ao nosso lado. Vendo o franzir de cenho dos cinquenta outros esperançosos na fila, minha mãe imediatamente se pôs a explicar às incrédulas senhoras que o fim da fila não era ali, ao que elas, sibilando, não responderam. Os ecos dos gritos ao celular continuaram a encher a sala pelos próximos minutos.

Seis e quarenta. O primeiro sinal de vida da sala vazia. Eu estava ainda longe da porta quando ela foi aberta por um funcionário uniformizado do hotel (que depois descobriria se chamar “Pedro”), que perguntou, com um inglês anasalado: Quem tem reservas?

De pronto, oito pessoas entraram na sala, e com eles Pedro, que sumiu por mais alguns minutos (“pergunta pra ele se dá pra gente entrar!”, “não, mãe, não dá pra entrar agora”, “mas vai lá e pergunta, se não vou eu!”). Após mais esse tempo de espera, Pedro reapareceu e, a um segundo chamado, mais alto, ainda uns sete reservistas menos pontuais seguiram os primeiros.

Ao longo de meia hora, Pedro chamou mais algumas vezes (mais alguém com reserva?), em vão, e explicou apressado (a uma velocidade que o qualificaria a narrar jogos de futebol pelo rádio) aos que restaram que não adiantava esperar de pé em frente à sala. “Deem uma caminhada por aí, comam alguma coisa. Temos um bar aqui ao lado. Não existe mais uma lista: Quando chegar a hora do show, eu tento encaixar a maior quantidade possível de pessoas pra dentro, mas vocês vão ficar de pé. O preço da entrada é de U$XXX, e ainda tem que pagar a consumação de U$XX. Voltem às 20:45 que a gente vê o que dá para fazer.”

Vale relembrar a velocidade absurda com que ele regurgitou todas essas informações; o processo não durou nem cinco segundos. Demorei mais cinco minutos para explicar à minha mãe que não adiantava esperar por ali (“mas não tem como colocar o nosso nome em uma lista?”, “não, mãe, ele falou que não.”, “como assim? vai lá perguntar pra ele!”, “ele falou que não, não preciso mais perguntar”, “mas vai lá e pergunta como é que funciona! se não, vou eu!”), e depois saímos do hotel, notando com amargura que as brasileiras que tentaram entrar conosco na fila armavam acampamento em frente à porta.

Após um curto diálogo em família ao sereno de New York (New York!), chegamos a algumas conclusões. A primeira era a de que minha tia (que não morre de amores por jazz) e minha avó (já cansada), iriam voltar para o hotel para descansar, o que se arranjou com um assobio de minha irmã para chamar um taxi e uma rápida troca de palavras minhas com o taxista para me certificar de que elas chegariam ao destino sem muitos problemas. Restamos quatro: eu, meu primo, minha irmã e minha mãe, uma pequena família solta no centro de Manhatan.

Vou acelerar um pouco o tempo; não vou narrar a pequena crônica da busca pelo jantar (que envolveu vários minutos de caminhada, desespero e injúrias lançadas às “brasileiras folgadas”), que nos levou a um incrível restaurante italiano, onde minha irmã viu um senhor que deveria ser alguém famoso (mas cujo nome ninguém foi capaz de lembrar) e comi o melhor spaghetti carbonara da minha vida.

De estômago cheio, voltamos para o hotel. Estávamos agora bem mais próximos da sala de show. As brasileiras folgadas estavam coladas à porta, como cães de guarda, e mais algumas pessoas esperavam ao redor, já sem muita esperança. Pela primeira vez, pude dar uma boa olhada pela porta de vidro; a sala era bem pequena para uma sala de shows, com apenas vinte mesinhas (ocupadas) e oito bancos no bar (ocupados).

Pedro colocou a cabeça pra fora mais uma vez, avisando em seu ritmo de locutor que existia ainda uma mesa vazia, com três lugares, ao que as brasileiras folgadas prontamente se espremeram pela porta de entrada, mal ouvindo a explicação de Pedro quanto aos U$XX adicionais que elas teriam que pagar pela mesa, muito menos as exclamações de raiva de uma dupla de adolescentes que estava esperando há muito mais tempo pela oportunidade de entrar.

Um trompetista pediu licença para a pequena multidão à porta e entrou, subindo no palco. Um a um, os outros instrumentistas também entraram e se instalaram; “deus, será que o Woody vai passar por aqui quando entrar?!”.

A resposta veio em dez minutos, precisamente às quinze para as nove. Woody entrou na sala por uma porta nos fundos, abriu caminho por entre as mesas e subiu no palco com o olhar baixo, o clarinete seguro na mão direita, sentando-se numa cadeirinha de madeira. Menos de um minuto depois, a música começou. Nas mesas, as pessoas se regozijaram de prazer, enquanto nós, os renegados, tentávamos dar uma boa olhada na celebridade que estava na sala ao lado. À aproximação de Pedro, nós seguramos o fôlego; “Certo, vou conseguir colocar todos vocês pra dentro. Primeiro vocês quatro.”

A dupla de adolescentes protestou em fúria ao ver que mais gente entraria na frente delas, e eu hesitei por quase um segundo inteiro antes de mandá-las às favas em minha mente e entrar atrás da minha família (Woody. Freaking. Alen.).

Estávamos o mais longe do palco que seria possível sem sair da sala, atrás da caixa registradora. Ainda assim, a visão era boa para mim e para meu primo. Mãe e irmã, verticalmente prejudicadas, se espremeram pela multidão para conseguir lugares melhores. As brasileiras folgadas, como verifiquei com prazer, estavam sentadas em uma mesinha apertada, atrás do piano, sem visão para nada, ensaiando um sorriso orgulhoso.

Encontrei uma posição em que poderia ficar mais alto, me equilibrando precariamente na beirada de uma cadeira, o traseiro apoiado na porta dos fundos. Eu fiquei com a câmera fotográfica, em dúvida se tirava fotos para gravar o momento ou filmava, para não perder os trejeitos de Woody enquanto tocava ou esperava sua vez de tocar, assoando o nariz, coçando a orelha esquerda com a mão direita ou simplesmente balançando a cabeça ao som da música. Me decidia ora por uma, ora por outra. Apertado como eu estava, não conseguia pensar em muitas possibilidades de enquadramentos fotográficos envolvendo Woody, uma vez que mesmo o maior zoom da poderosa lente criava apenas a ilusão de que eu estava a dez metros do artista, mas brinquei um pouco com iluminação e movimentos, passando de Woody e sua banda para minha irmã, depois para meu reflexo no espelho, paralisado em um grande sorriso, depois de volta para a banda; enquanto isso, meu primo me auxiliava na difícil tarefa de beber cerveja (ilegal) enquanto filmava, tentando não cair nem derrubar nada em minha posição de equilibrista circense.

Próximo a nós, um senhor gordo e careca, de bigodes fartos e expressão bondosa, conversava tranquilamente com duas garotas e um rapaz que o acompanhavam, cada um deles com uns dezessete anos. De quando em quando as garotas cochichavam alguma coisa entre elas, olhavam para mim e para meu primo, riam e desviavam o olhar. A loira observava mais atentamente meu primo, enquanto a outra, uma oriental, olhava para mim (certamente algum tipo de maldição pessoal minha; talvez eu a trabalhe em outra história). Com um suspiro, decidi que, como estava passando por alguém velho o suficiente para beber legalmente a cerveja que meu primo naquele momento segurava para mim, não faria sentido tentar me aproximar de garotas tão jovens. Dei de ombros; a música estava boa, e eu estava conseguindo alguns bons ângulos da banda de meu poleiro.

Quando o lamento de meus pés e minhas costas se fizeram mais altos que a música, desci do meu poleiro e passei a câmera para meu primo, que queria ver como estavam as fotos. Ao lado dele, o senhor de bigodes olhava interessado para o visor da câmera. “You`ve got some nice pictures there, my boy!”. Meu primo sacudiu a cabeça e, se desculpando, apontou pra mim “I don`t speak English... He. He speak.”. O senhor, então, puxou assunto, e ao som do jazz conversamos sobre as fotografias que eu havia tirado do show, sobre as fotografias que minha irmã havia tirado de Manhatan, sobre o Brasil,  que ele já havia visitado, sobre como aquele rapaz que o acompanhava era também um brasileiro (ao que o rapaz se virou para nós e fez um rápido sinal de “hang loose”, sem no entanto proferir uma palavra), e um ou outro assunto solto que nos convinha perguntar. Pensei em perguntar o que ele fazia da vida, mas não encontrei nenhuma brecha em que pudesse colocar esse assunto, fato do qual eu me arrependeria em alguns poucos minutos. Como o show parecia estar chegando ao fim (metade da banda saiu do palco pela porta dos fundos, ao meu lado), decidi voltar ao meu poleiro para captar algumas imagens de despedida. Reparei que minha irmã, sem perder tempo, se posicionou de forma a interceptar qualquer pessoa que, no futuro próximo, pretendesse percorrer o caminho entre o palco e a porta de entrada (leia-se: Woody Alen).

Um homem alinhado, de terno e gravata pretos e um comunicador preso à orelha, ao melhor estilo James Bond, entrou pela porta traseira (quase me derrubando do poleiro) e trocou umas poucas palavras com meu novo amigo, o senhor de bigodes. “O motorista está pronto.”, “Certo.”. O senhor de bigodes, então, fez um gesto para as garotas e o rapaz, que prontamente saíram pela porta dos fundos, enquanto Woody solava as últimas notas agudas de seu clarinete. Ora, pensei, eles vão perder o fim do show! E ele provavelmente vai passar por aqui quando sair!

Filmei o percurso do cineasta enquanto ele descia do palco, impressionado com o fato de que, vendo-o pelo visor da câmera, eu me sentia como se assistindo a um de seus filmes, seus gestos meticulosos e pequenos trejeitos saltando aos olhos no pequeno quadro. Por um instante, no canto do visor, a figura de minha irmã pareceu inevitavelmente fadada a cruzar o caminho de nosso ídolo, mas um fã mais afoito se colocou entre os dois e, para assombro absoluto de Woody, lhe desferiu um abraço. Pela primeira vez na noite, o artista levantou o olhar, em expressão desesperada, mas em menos de um segundo foi socorrido por um homem de terno que afastou o transgressor com um movimento de braço e conduziu Woody até a porta ao meu lado, mantendo todos os outros fãs afastados. Foi só quando os dois passavam ao meu lado, a uma distância na qual eu poderia os ter tocado esticando o braço (o que não fiz menos em respeito ao artista que para não estragar a sequência de minha própria filmagem), que percebi que o homem que cuidava de Woody era o mesmo senhor de bigodes que há poucos minutos conversava amigavelmente comigo.

A porta se fechou às suas costas, e um segurança garantiu que ela ficasse fechada por pelo menos mais um minuto.

Chocados, eu e meu primo nos reencontramos com minha mãe e irmã e trocamos experiências; aparentemente, elas haviam passado por algumas aventuras durante o show, que culminaram em algumas inimizades, um prêmio não oficial à minha irmã como “alma do show” e “melhor dançarina” e, mais interessante, a amizade de Pedro, que demorou um pouco para ser explicada pelo fato de que eu ainda nem sabia que era esse o nome do homem que nos impediu e conferiu a entrada a essa sala de shows.

Eu e minha irmã fomos, então, conversar com os músicos que restavam no palco, o pianista, o baterista e o tocador de banjo, todos excelentes artistas. Conseguimos a atenção do pianista: “Oi! Com licença! Então, eu e minha/meu irmã/irmão viemos para ver o Woody Alen, mas adoramos vocês/vocês são incríveis!”. Não sei se foi pelo fato de termos sido tão diretos ou pelo fato de termos falado ao mesmo tempo frases tão parecidas, mas a reação do pianista foi de, por dois segundos, olhar espantado para o casal de irmãos à sua frente. Após o susto, no entanto, engajamos em uma conversa, durante a qual ele comentou que já visitara o Brasil e pretendia voltar em breve, ao que minha irmã rapidamente se ofereceu para fazer a filmagem desse evento de graça. Acredito que ele tenha, se não se convencido, ao menos cogitado seriamente a ideia. Trocamos cartões e minha irmã colocou em sua mão um DVD com alguns de seus curtas (cujo objetivo original era o bolso da jaqueta de Woody), ao que eu me apressei em elogiar minha irmã, dizendo que, caso tivesse tempo, ele não se arrependeria em dar uma olhada.

Nos despedimos, nos agradecemos mutuamente e, por fim, saímos para a noite. Conversando, erramos o caminho até o metrô, chegando até o rio Houston. Quando não aguentávamos mais andar, um simpático taxista da Costa do Marfim nos levou ao hotel (“não sei se ainda é perigoso andar pelo Central Park à noite, mas eu não me arrisco”).

De toda essa história, tiro uma moral simples; beber nem sempre é uma boa ideia. De toda forma, o que restam agora são memórias de um show incrível e de uma noite muito agradável, das risadas quando juntamos as pontas das histórias e das piadas.

Talvez daqui a alguns anos (confiando no avanço da medicina), quando os “Irmãos Guerra” forem alguma coisa, minha irmã ainda tenha a possibilidade de, naquela mesma sala de show ou em uma nominação ao Oscar (®), falar a um idoso Woody Alen aquela frase em inglês que tanto treinou em frente ao espelho.

(para ver o resultado da empreitada, clique aqui)

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